12) O bibliofilo aprendiz
Capitulo "Colecionar o quê?", do livro de Rubens Borba de Moraes, O Bibliófilo Aprendiz (Casa da Palavra, 2007)
É aos psicanalistas que se deve perguntar por que se coleciona. Só eles sabem descobrir quais os motivos inconfessáveis e escabrosos que levam um burguês pacato e morigerado a praticar atos perfeitamente simples e morais.
Não resta dúvida que o dom de colecionar é uma compensação para algum complexo. Em muitos casos é simplesmente um complexo de fuga, uma “Pasárgada” que ajuda a suportar guerras, inflações, desejos frustrados ou simplesmente uma mulher tagarela. Compensá-los, escrevendo poemas, pintando, esculpindo ou colecionando ainda é a melhor terapêutica que pode haver.
Há gente que coleciona selos, discos de fonógrafo, botões de fardas, soldadinhos de chumbo, figurinhas de toda sorte, e até caixas de fósforos. Tutancâmon colecionava bengalas e as queria tanto que foi enterrado com elas. Don Giovanni, mulheres. Chegou a possuir mille e tre, mille e tre… como se canta na ópera.
Não há coleção tola e ridícula quando feita com arte, gosto e conhecimento. Vi, há anos, exposta num museu, uma coleção particular de carteiras de cigarros. Essa coleção tinha sido feita com tal gosto, tal arte, que a gente se esquecia que aquelas lindas figurinhas, aqueles desenhos pitorescos e divertidos tinham sido feitos para proteger cigarros. A carteira de cigarros desaparecia, sobrando somente a obra de arte popular, o documento de uma época. Um historiador de arte ou um sociólogo poderia escrever um livro apaixonante, graças a esses documentos colhidos por um colecionador.
Colecionar é uma arte. Como toda arte, é preciso que esteja combinada com o conhecimento, com o métier, para se tornar uma verdadeira criação. Muita gente pensa que colecionar é um passatempo de rico. Engano: que o diga o nosso colecionador de carteiras de cigarros.
Toda gente compra livros uma vez ou outra. Comprar livros, hoje em dia, é uma necessidade. É indispensável em certas profissões. No entanto, uma minoria somente coleciona livros. É porque nem todos têm a sorte de possuir o dom da bibliofilia ou, se quiserem, os complexos necessários para se tornarem bibliófilos.
Colecionar livros não é uma ocupação mais cara que a de comprar casualmente um ou outro romance para se ler em viagem. Depende do gênero que se quer colecionar. Imprimem-se, todos os anos, milhões de livros no mundo. Da descoberta do prelo até hoje imprimiram-se outros tantos milhões. Não é, por conseguinte, por falta de material que se deixa de colecionar. Mas, justamente essa pletora é que torna difícil a escolha. É preciso, portanto, escolher com muito critério qual o gênero de livro que se quer colecionar. Nunca um bom colecionador deve ir comprando o que lhe agrada no momento. Se assim fizer, chegará, no fim de alguns anos, a ter uma vasta livraria sobre os assuntos mais diversos, obras dos autores mais variados, edições das mais disparatadas, mas nunca uma coleção digna de um bibliófilo. Terá formado um acervo de biblioteca pública, quando muito.
Há, digamos, para facilitar, dois rumos a seguir: ou escolher o assunto ou escolher as obras de um determinado autor como objetivo de uma coleção. Mas, que assunto, que autores? Não é possível aconselhar. É uma questão de gosto e de conhecimento. Deve-se escolher o assunto de que mais se gosta ou mais se entenda; o autor que mais agrada. Mas, cuidado, nem toda onça é tapete, não escolha um assunto vasto demais ou um autor antigo, cujas obras têm milhares de edições. O senso da medida é indispensável. O saber restringir o objetivo de uma coleção é a única possibilidade que se tem de formar uma verdadeira biblioteca particular e não um bricabraque de livros.
Não se deve escolher um assunto ou um autor, cujas obras estejam acima das possibilidades financeiras do colecionador. Há assuntos caros. Há autores, cujas obras nas edições procuradas custam verdadeiras fortunas.
O prazer de colecionar, a emoção de encontrar um livro procurado há anos, a volúpia de completar as obras de um autor, é, para o milionário que paga uma fortuna por um livro, a mesma do pobretão que encontra num sebo o volume sonhado.
O primeiro passo a dar, portanto, quando se decide colecionar livros é planejar a coleção que pretende fazer. É preciso estudar o assunto. Conhecê-lo bem. Saber o caminho a seguir. Quanto mais erudito for o colecionador, mais probabilidades terá de formar uma biblioteca de valor.
Não se deve colecionar com o intuito de ganhar dinheiro. Comprar livros com a intenção de vendê-los mais tarde com lucro não é próprio de bibliófilo, mas de livreiro. Um amigo meu, bibliófilo apaixonado, resolveu abrir uma livraria. Parecia-lhe que era esse o melhor meio de aumentar sua biblioteca com pouco dispêndio. Ora, aconteceu-lhe que as boas compras que fazia, ficava com elas. Só punha à venda o que não lhe interessava ou lhe parecia muito caro. Em pouco tempo a loja do livreiro colecionador tornou-se cheia de verdadeiro rebotalho. Ninguém queria esse refugo e, antes de ir à falência, o comerciante inexperiente tratou de vender a livraria. Outro conhecido meu, livreiro estabelecido, resolveu colecionar livros sobre um autor de sua predileção. Reuniu, em alguns anos, uma excelente coleção de todos os livros desse autor, em primeiras edições. Esse conjunto magnífico ficou valendo muito bom dinheiro, dinheiro que fazia falta para movimentar sua casa comercial. Acabou vendendo a coleção, para continuar a ser livreiro.
Colecionador e livreiro são coisas diferentes. São raríssimos os exemplos de quem tenha misturado as duas coisas com sucesso. O Dr. Rosenbach o fez, mas ele era conhecido como o Napoleão dos livreiros.
O colecionador que deseja fazer negócio e labora nesse sentido acaba quase sempre perdendo. O amor ao lucro é nefasto aos bibliófilos. O prazer de formar uma bela coleção é uma recompensa suficiente. É verdade que, se ele tiver critério e gosto, acabará formando um conjunto que valerá muito mais do que gastou. Será a recompensa material pela sua arte e ciência.
Vamos a um caso concreto. Suponhamos que um médico queira colecionar livros sobre medicina. Nada mais apropriado, nada mais legítimo e mais bem escolhido para um médico. Os médicos são muito dados à bibliofilia. Há muita sociedade de médicos bibliófilos. Acontece que o assunto é vastíssimo, verdadeiramente inesgotável. A National Library of Medicine dos Estados Unidos contém centenas de milhares de livros e está muito longe, mas muito longe, de possuir uma coleção completa. Aliás, não está na cogitação de nenhuma biblioteca médica a intenção utópica de possuir tudo que se publicou sobre medicina no mundo, nem sequer ter tudo quanto se publica atualmente sobre esse vasto assunto.
O médico que desejar colecionar livros sobre medicina deverá, portanto, logo no início, escolher ou um ramo da medicina ou uma época na história da medicina. Poderá, por exemplo, escolher os livros sobre a sífilis, assunto, aliás, muito procurado, que contém obras muito raras e bastante caras. Ou, então, os livros antigos sobre anatomia. Muitos desses livros são ilustrados com gravuras belíssimas e alguns são extremamente raros.
Ou, ainda, os livros que marcaram época na história da medicina.
Para médicos brasileiros, há um assunto apaixonante: os primeiros livros de medicina brasileira. Livros sobre medicina dos tempos coloniais há poucos, uns doze ou quinze que eu saiba. Alguns como, por exemplo, o Tratado único da constituição pestilencial de Pernambuco, escrito por João Ferreira da Rosa, impresso em Lisboa em 1694. É nesse livro que aparece a primeira observação, a descrição clara e inconfundível da febre amarela. Ferreira da Rosa fez a observação em Pernambuco. É, pois, um desses livros que marcam época. Todo livro que cita pela primeira vez um fato importante, marca uma data na História, tem um valor bibliográfico universal, é procurado e se torna geralmente raro. Esse Tratado único da constituição pestilencial de Pernambuco (que título magnífico!) tem uma outra particularidade: é raríssimo. Não se conhecem mais que uns poucos exemplares mas, tenho para mim, que deve haver mais alguns desconhecidos dos bibliófilos. Procurem-nos, portanto, os colecionadores!
Nem todos os livros de medicina antiga brasileira são tão desanimadoramente raros. As Notícias do que he o achaque do bicho, escrito por “Miguel Dias Pimenta, Familiar do S. Officio e residente no Arrecife de Pernambuco” , impresso em Lisboa em 1707, é outro livro célebre que descreve uma moléstia muito comum no Brasil colonial. Pimenta não era médico. Nascido em Portugal, foi para Recife tentar fortuna. Com quinze anos era caixeiro e quando publicou as Notícias já era comerciante abastado. Há quem suponha que comprava barato escravos doentes, atacados de “achaque do bicho”, tratava-os de acordo com o método que inventara e revendia-os, curados, por muito bom dinheiro. Não era mau homem o mascate enriquecido. Negociar em escravos era um negócio tão limpo quanto qualquer outro naquele tempo. Possuía até um certo senso de humanidade, tanto assim que resolveu divulgar o método que inventara para curar o “bicho”. Diz ele que publicava o livro “por zelo da caridade proximal... para que todos se possam curar por si”. O que admira não é a “caridade proximal” de Pimenta, tão rara naquela época, mas que conseguisse curar alguém com os remédios que preconizava. O “achaque do bicho” era moléstia freqüente no Brasil e em Angola até o século XIX, e muitos livros de Medicina descrevem o mal e receitam remédios. Parece que era uma espécie de retite gangrenosa, agravada por toda sorte de complicações devidas à falta de higiene corporal. O doente chegava a “criar bichos” e daí o nome da moléstia.
A obra de Pimenta é um livro de medicina escrito por um leigo, baseado em observações e prática. Daí seu valor todo especial. Acresce que é um livro extremamente raro, uma verdadeira jóia brasiliana.
Já que estou citando livros de medicina antiga do Brasil, não posso deixar de mencionar um dos mais interessantes, o Governo de mineiros, de autoria de João Antonio Mendes, impresso em Lisboa em 1770. É um manual de medicina prática, caseira, escrito para os que viviam em Minas Gerais, “distantes de professores seis, oito, dez e mais legoas padecendo por esta cauza os seus domesticos e escravos queixas, que pela dilação dos remedios se fazem incuraveis, e as mais das vezes mortaes”. João Antônio Mendes era “cirurgiam e anatomico aprovado” e exerceu a medicina nas Minas por longos anos. Outro livro curiosíssimo, escrito também por um médico que clinicava em Minas, é o Erario mineral, de Luís Gomes Ferreira, impresso em Lisboa em 1735. É um livro interessantíssimo, cheio de detalhes curiosos sobre a vida que levavam os mineradores. Grande livro é o Erario mineral, e raríssimo!
Há outros: a Prodigiosa lagoa descuberta nas Congonhas das Minas do Sabará, impresso em Lisboa em 1749, sem o nome de autor, mas de autoria de João Cardoso de Miranda, o Trattado único das bexigas, e sarampo, por Romão Mõssia Reinhipo (o médico Simão Pinheiro Morão), o primeiro livro de medicina brasileira, impresso em Lisboa 1683, e mais alguns outros. Mas dessa época (século XVII e XVIII) não existem, como já disse, mais do que uma dúzia de livros de medicina brasileira, sem contar as teses dos médicos brasileiros que se formaram em Montpellier, em Coimbra e Edimburgo. São todos muito raros, mas nenhum bibliófilo, mesmo principiante, perde a esperança de obter uma peça dessa raridade. E faz muito bem, porque a sorte é um elemento com o qual se deve contar.
Nem todos os livros de medicina brasileira são tão raros como os que citei. Os que foram publicados na Bahia e no Rio de Janeiro, em princípios do século XIX, embora sejam bastante raros, encontram-se de vez em quando. Muitos desses livros são traduções de obras européias, feitas por médicos brasileiros. Quando se fundaram as Escolas de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro houve necessidade de manuais para os alunos. Diversos professores traduziram, então, os livros clássicos franceses e ingleses, usados nas faculdades de Paris e Edimburgo. Essas traduções são, muitas vezes, anotadas pelos clínicos nacionais, com observações feitas no Brasil, o que as torna mais valiosas cientificamente. As traduções de Bichat, Fourcroy, Cabanis, Richerand, Maunoir e outros médicos estrangeiros estão entre os primeiros livros de medicina impressos no Brasil. Mais valiosas, talvez, são as obras originais dos médicos brasileiros, os livros de José Maria Bomtempo, Luís de Santa Ana Gomes, Domingos Ribeiro Guimarães Peixoto, e tantos outros, sem falar nas obras do Dr. Melo Franco, publicadas anteriormente em Lisboa. Nem todas as obras desse famoso médico mineiro são difíceis de achar, mas a Medicina theologica é um livro muito raro e muito curioso. Um psicanalista, lendo-o com atenção, encontraria nas suas páginas as teorias de Freud em germe. Melo Franco foi um precursor em muita matéria médica e o nosso primeiro pediatra. Publicou, em 1790, um Tratado da educação fysica dos meninos.
Como se vê, não faltam livros de medicina brasileira para formar uma belíssima coleção. A dificuldade de se obter as obras publicadas nos tempos coloniais não deve desanimar. O assunto não é, ainda, muito procurado. Uma boa coleção de medicina antiga brasileira seria (digo seria porque não conheço presentemente nenhuma verdadeiramente rica) uma obra digna dos maiores louvores e de um valor incalculável.
Há outros assuntos pouco explorados em bibliofilia brasileira, onde um colecionador ativo poderia empregar sua erudição e faro. Por que não colecionar os primeiros impressos produzidos nos diferentes estados e cidades do Brasil? É um assunto pouco explorado, onde há um vasto campo para pesquisa e muita descoberta a fazer. Outro assunto tentador seria colecionar os livros sobre escravidão ou sobre imigração ou, ainda, as primeiras edições dos escritores de uma escola literária. Digo de uma ou duas escolas literárias, porque ambicionar possuir todas as primeiras edições de obras literárias brasileiras seria uma ambição napoleônica.
O leitor já deve ter percebido que sou francamente partidário das pequenas coleções, da restrição do âmbito de uma coleção. De fato, hoje em dia não é possível um particular formar uma grande biblioteca sobre um assunto geral. Embora possua muito dinheiro, tempo e conhecimento do assunto, a concorrência que sofre das bibliotecas públicas, dos outros colecionadores que procuram as mesmas obras há mais tempo que ele, é um obstáculo muito difícil de vencer. É preciso ter sempre em mente que o número de exemplares de um livro é limitado. Muitos e muitos livros não existem mais no mercado, todos os exemplares já estão nas bibliotecas dos governos e nunca mais serão vendidos. É preciso saber que não se compra o que se quer, mas o que se pode comprar e o que aparece à venda. Já é, portanto, uma limitação com a qual o colecionador deve contar. Há livros que nunca mais aparecerão à venda. Um exemplo entre mil é o que aconteceu com a Historia da provincia Sãcta Cruz a que vulgarmete chamamos Brasil feita por Pero de Magalhaes de Gandavo, impressa em Lisboa em 1576. Dessa obra clássica, o primeiro livro sobre o Brasil escrito em português, existiam sete exemplares no mundo, todos em bibliotecas públicas da Europa e dos Estados Unidos. Em 1946 apareceu um oitavo exemplar. Oferecia-o à venda o famoso livreiro Rosenbach. Essas ocasiões são das tais que não se perdem. Agora, já, ou nunca mais! Como responsável pela direção da Biblioteca Nacional do Rio, naquele tempo, eu não podia deixar escapar essa ocasião única de enriquecer o Brasil com um exemplar de um dos livros mais importantes sobre nosso país. Comprei esse exemplar perfeito da tiragem mais rara, da qual só existem dois outros. Assim procedi, embora a Nacional já possuísse um Gandavo com as margens cortadas rente ao texto, bichado e encadernado num volume com outros folhetos. O Brasil merece possuir um belo exemplar de um dos monumentos de sua cultura. Muitos me criticaram acerbamente. “Sabeis quão má gente é a da Índia...”. Exemplos como esse aparecem a toda hora. Os livros raros vão sumindo do mercado. A ciência de colecionar consiste em saber quais os livros que estão desaparecendo e em comprá-los na hora certa. Muitas vezes é preciso coragem para pagar o preço pedido, mas sem coragem nada se faz na vida, nem uma biblioteca. Voltemos ao caso das pequenas coleções sobre um assunto determinado, preferivelmente às coleções gerais.
Na minha opinião, o que é digno de admirar é um conjunto de livros homogêneo. O que é apreciável numa biblioteca particular não é o número de livros caros que contém. A existência de livros raros no meio de uma porção de outros, sobre assuntos inteiramente diferentes, faz a gente lembrar muito mais o que falta na coleção do que aquilo que existe. Colecionar não é juntar livros. O que é difícil, o que torna a bibliofilia um divertimento, um hobby apaixonante, é justamente a procura do que lhe falta. É o prazer em encontrar o exemplar desejado. Pouco importa o preço que se pagou por esse prazer. Pode ser uma pequena fortuna ou alguns cruzeiros. Comprar livros raros e caros, a torto e a direito, está no alcance de qualquer pessoa com dinheiro no bolso.
Para se formar uma coleção homogênea sobre um assunto ou um autor é preciso ciência, conhecer a vida do autor, saber quando, onde publicou seus livros. É preciso toda uma soma de conhecimentos, uma verdadeira erudição, às vezes. É aí que está a diferença entre o verdadeiro bibliófilo e o mero comprador de livros. O verdadeiro bibliófilo sabe o que compra e por que compra. Às vezes tem a santa ingenuidade de crer que o livreiro não sabe o que está vendendo e não soube marcar o preço. Doce ilusão que logo perde. Os bons livreiros possuem três virtudes: o faro para descobrir, o talento para comprar barato e a fé em poder vender caro. O bibliófilo deve ter somente coragem para pagar e saber o que e por que está comprando.
É aos psicanalistas que se deve perguntar por que se coleciona. Só eles sabem descobrir quais os motivos inconfessáveis e escabrosos que levam um burguês pacato e morigerado a praticar atos perfeitamente simples e morais.
Não resta dúvida que o dom de colecionar é uma compensação para algum complexo. Em muitos casos é simplesmente um complexo de fuga, uma “Pasárgada” que ajuda a suportar guerras, inflações, desejos frustrados ou simplesmente uma mulher tagarela. Compensá-los, escrevendo poemas, pintando, esculpindo ou colecionando ainda é a melhor terapêutica que pode haver.
Há gente que coleciona selos, discos de fonógrafo, botões de fardas, soldadinhos de chumbo, figurinhas de toda sorte, e até caixas de fósforos. Tutancâmon colecionava bengalas e as queria tanto que foi enterrado com elas. Don Giovanni, mulheres. Chegou a possuir mille e tre, mille e tre… como se canta na ópera.
Não há coleção tola e ridícula quando feita com arte, gosto e conhecimento. Vi, há anos, exposta num museu, uma coleção particular de carteiras de cigarros. Essa coleção tinha sido feita com tal gosto, tal arte, que a gente se esquecia que aquelas lindas figurinhas, aqueles desenhos pitorescos e divertidos tinham sido feitos para proteger cigarros. A carteira de cigarros desaparecia, sobrando somente a obra de arte popular, o documento de uma época. Um historiador de arte ou um sociólogo poderia escrever um livro apaixonante, graças a esses documentos colhidos por um colecionador.
Colecionar é uma arte. Como toda arte, é preciso que esteja combinada com o conhecimento, com o métier, para se tornar uma verdadeira criação. Muita gente pensa que colecionar é um passatempo de rico. Engano: que o diga o nosso colecionador de carteiras de cigarros.
Toda gente compra livros uma vez ou outra. Comprar livros, hoje em dia, é uma necessidade. É indispensável em certas profissões. No entanto, uma minoria somente coleciona livros. É porque nem todos têm a sorte de possuir o dom da bibliofilia ou, se quiserem, os complexos necessários para se tornarem bibliófilos.
Colecionar livros não é uma ocupação mais cara que a de comprar casualmente um ou outro romance para se ler em viagem. Depende do gênero que se quer colecionar. Imprimem-se, todos os anos, milhões de livros no mundo. Da descoberta do prelo até hoje imprimiram-se outros tantos milhões. Não é, por conseguinte, por falta de material que se deixa de colecionar. Mas, justamente essa pletora é que torna difícil a escolha. É preciso, portanto, escolher com muito critério qual o gênero de livro que se quer colecionar. Nunca um bom colecionador deve ir comprando o que lhe agrada no momento. Se assim fizer, chegará, no fim de alguns anos, a ter uma vasta livraria sobre os assuntos mais diversos, obras dos autores mais variados, edições das mais disparatadas, mas nunca uma coleção digna de um bibliófilo. Terá formado um acervo de biblioteca pública, quando muito.
Há, digamos, para facilitar, dois rumos a seguir: ou escolher o assunto ou escolher as obras de um determinado autor como objetivo de uma coleção. Mas, que assunto, que autores? Não é possível aconselhar. É uma questão de gosto e de conhecimento. Deve-se escolher o assunto de que mais se gosta ou mais se entenda; o autor que mais agrada. Mas, cuidado, nem toda onça é tapete, não escolha um assunto vasto demais ou um autor antigo, cujas obras têm milhares de edições. O senso da medida é indispensável. O saber restringir o objetivo de uma coleção é a única possibilidade que se tem de formar uma verdadeira biblioteca particular e não um bricabraque de livros.
Não se deve escolher um assunto ou um autor, cujas obras estejam acima das possibilidades financeiras do colecionador. Há assuntos caros. Há autores, cujas obras nas edições procuradas custam verdadeiras fortunas.
O prazer de colecionar, a emoção de encontrar um livro procurado há anos, a volúpia de completar as obras de um autor, é, para o milionário que paga uma fortuna por um livro, a mesma do pobretão que encontra num sebo o volume sonhado.
O primeiro passo a dar, portanto, quando se decide colecionar livros é planejar a coleção que pretende fazer. É preciso estudar o assunto. Conhecê-lo bem. Saber o caminho a seguir. Quanto mais erudito for o colecionador, mais probabilidades terá de formar uma biblioteca de valor.
Não se deve colecionar com o intuito de ganhar dinheiro. Comprar livros com a intenção de vendê-los mais tarde com lucro não é próprio de bibliófilo, mas de livreiro. Um amigo meu, bibliófilo apaixonado, resolveu abrir uma livraria. Parecia-lhe que era esse o melhor meio de aumentar sua biblioteca com pouco dispêndio. Ora, aconteceu-lhe que as boas compras que fazia, ficava com elas. Só punha à venda o que não lhe interessava ou lhe parecia muito caro. Em pouco tempo a loja do livreiro colecionador tornou-se cheia de verdadeiro rebotalho. Ninguém queria esse refugo e, antes de ir à falência, o comerciante inexperiente tratou de vender a livraria. Outro conhecido meu, livreiro estabelecido, resolveu colecionar livros sobre um autor de sua predileção. Reuniu, em alguns anos, uma excelente coleção de todos os livros desse autor, em primeiras edições. Esse conjunto magnífico ficou valendo muito bom dinheiro, dinheiro que fazia falta para movimentar sua casa comercial. Acabou vendendo a coleção, para continuar a ser livreiro.
Colecionador e livreiro são coisas diferentes. São raríssimos os exemplos de quem tenha misturado as duas coisas com sucesso. O Dr. Rosenbach o fez, mas ele era conhecido como o Napoleão dos livreiros.
O colecionador que deseja fazer negócio e labora nesse sentido acaba quase sempre perdendo. O amor ao lucro é nefasto aos bibliófilos. O prazer de formar uma bela coleção é uma recompensa suficiente. É verdade que, se ele tiver critério e gosto, acabará formando um conjunto que valerá muito mais do que gastou. Será a recompensa material pela sua arte e ciência.
Vamos a um caso concreto. Suponhamos que um médico queira colecionar livros sobre medicina. Nada mais apropriado, nada mais legítimo e mais bem escolhido para um médico. Os médicos são muito dados à bibliofilia. Há muita sociedade de médicos bibliófilos. Acontece que o assunto é vastíssimo, verdadeiramente inesgotável. A National Library of Medicine dos Estados Unidos contém centenas de milhares de livros e está muito longe, mas muito longe, de possuir uma coleção completa. Aliás, não está na cogitação de nenhuma biblioteca médica a intenção utópica de possuir tudo que se publicou sobre medicina no mundo, nem sequer ter tudo quanto se publica atualmente sobre esse vasto assunto.
O médico que desejar colecionar livros sobre medicina deverá, portanto, logo no início, escolher ou um ramo da medicina ou uma época na história da medicina. Poderá, por exemplo, escolher os livros sobre a sífilis, assunto, aliás, muito procurado, que contém obras muito raras e bastante caras. Ou, então, os livros antigos sobre anatomia. Muitos desses livros são ilustrados com gravuras belíssimas e alguns são extremamente raros.
Ou, ainda, os livros que marcaram época na história da medicina.
Para médicos brasileiros, há um assunto apaixonante: os primeiros livros de medicina brasileira. Livros sobre medicina dos tempos coloniais há poucos, uns doze ou quinze que eu saiba. Alguns como, por exemplo, o Tratado único da constituição pestilencial de Pernambuco, escrito por João Ferreira da Rosa, impresso em Lisboa em 1694. É nesse livro que aparece a primeira observação, a descrição clara e inconfundível da febre amarela. Ferreira da Rosa fez a observação em Pernambuco. É, pois, um desses livros que marcam época. Todo livro que cita pela primeira vez um fato importante, marca uma data na História, tem um valor bibliográfico universal, é procurado e se torna geralmente raro. Esse Tratado único da constituição pestilencial de Pernambuco (que título magnífico!) tem uma outra particularidade: é raríssimo. Não se conhecem mais que uns poucos exemplares mas, tenho para mim, que deve haver mais alguns desconhecidos dos bibliófilos. Procurem-nos, portanto, os colecionadores!
Nem todos os livros de medicina antiga brasileira são tão desanimadoramente raros. As Notícias do que he o achaque do bicho, escrito por “Miguel Dias Pimenta, Familiar do S. Officio e residente no Arrecife de Pernambuco” , impresso em Lisboa em 1707, é outro livro célebre que descreve uma moléstia muito comum no Brasil colonial. Pimenta não era médico. Nascido em Portugal, foi para Recife tentar fortuna. Com quinze anos era caixeiro e quando publicou as Notícias já era comerciante abastado. Há quem suponha que comprava barato escravos doentes, atacados de “achaque do bicho”, tratava-os de acordo com o método que inventara e revendia-os, curados, por muito bom dinheiro. Não era mau homem o mascate enriquecido. Negociar em escravos era um negócio tão limpo quanto qualquer outro naquele tempo. Possuía até um certo senso de humanidade, tanto assim que resolveu divulgar o método que inventara para curar o “bicho”. Diz ele que publicava o livro “por zelo da caridade proximal... para que todos se possam curar por si”. O que admira não é a “caridade proximal” de Pimenta, tão rara naquela época, mas que conseguisse curar alguém com os remédios que preconizava. O “achaque do bicho” era moléstia freqüente no Brasil e em Angola até o século XIX, e muitos livros de Medicina descrevem o mal e receitam remédios. Parece que era uma espécie de retite gangrenosa, agravada por toda sorte de complicações devidas à falta de higiene corporal. O doente chegava a “criar bichos” e daí o nome da moléstia.
A obra de Pimenta é um livro de medicina escrito por um leigo, baseado em observações e prática. Daí seu valor todo especial. Acresce que é um livro extremamente raro, uma verdadeira jóia brasiliana.
Já que estou citando livros de medicina antiga do Brasil, não posso deixar de mencionar um dos mais interessantes, o Governo de mineiros, de autoria de João Antonio Mendes, impresso em Lisboa em 1770. É um manual de medicina prática, caseira, escrito para os que viviam em Minas Gerais, “distantes de professores seis, oito, dez e mais legoas padecendo por esta cauza os seus domesticos e escravos queixas, que pela dilação dos remedios se fazem incuraveis, e as mais das vezes mortaes”. João Antônio Mendes era “cirurgiam e anatomico aprovado” e exerceu a medicina nas Minas por longos anos. Outro livro curiosíssimo, escrito também por um médico que clinicava em Minas, é o Erario mineral, de Luís Gomes Ferreira, impresso em Lisboa em 1735. É um livro interessantíssimo, cheio de detalhes curiosos sobre a vida que levavam os mineradores. Grande livro é o Erario mineral, e raríssimo!
Há outros: a Prodigiosa lagoa descuberta nas Congonhas das Minas do Sabará, impresso em Lisboa em 1749, sem o nome de autor, mas de autoria de João Cardoso de Miranda, o Trattado único das bexigas, e sarampo, por Romão Mõssia Reinhipo (o médico Simão Pinheiro Morão), o primeiro livro de medicina brasileira, impresso em Lisboa 1683, e mais alguns outros. Mas dessa época (século XVII e XVIII) não existem, como já disse, mais do que uma dúzia de livros de medicina brasileira, sem contar as teses dos médicos brasileiros que se formaram em Montpellier, em Coimbra e Edimburgo. São todos muito raros, mas nenhum bibliófilo, mesmo principiante, perde a esperança de obter uma peça dessa raridade. E faz muito bem, porque a sorte é um elemento com o qual se deve contar.
Nem todos os livros de medicina brasileira são tão raros como os que citei. Os que foram publicados na Bahia e no Rio de Janeiro, em princípios do século XIX, embora sejam bastante raros, encontram-se de vez em quando. Muitos desses livros são traduções de obras européias, feitas por médicos brasileiros. Quando se fundaram as Escolas de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro houve necessidade de manuais para os alunos. Diversos professores traduziram, então, os livros clássicos franceses e ingleses, usados nas faculdades de Paris e Edimburgo. Essas traduções são, muitas vezes, anotadas pelos clínicos nacionais, com observações feitas no Brasil, o que as torna mais valiosas cientificamente. As traduções de Bichat, Fourcroy, Cabanis, Richerand, Maunoir e outros médicos estrangeiros estão entre os primeiros livros de medicina impressos no Brasil. Mais valiosas, talvez, são as obras originais dos médicos brasileiros, os livros de José Maria Bomtempo, Luís de Santa Ana Gomes, Domingos Ribeiro Guimarães Peixoto, e tantos outros, sem falar nas obras do Dr. Melo Franco, publicadas anteriormente em Lisboa. Nem todas as obras desse famoso médico mineiro são difíceis de achar, mas a Medicina theologica é um livro muito raro e muito curioso. Um psicanalista, lendo-o com atenção, encontraria nas suas páginas as teorias de Freud em germe. Melo Franco foi um precursor em muita matéria médica e o nosso primeiro pediatra. Publicou, em 1790, um Tratado da educação fysica dos meninos.
Como se vê, não faltam livros de medicina brasileira para formar uma belíssima coleção. A dificuldade de se obter as obras publicadas nos tempos coloniais não deve desanimar. O assunto não é, ainda, muito procurado. Uma boa coleção de medicina antiga brasileira seria (digo seria porque não conheço presentemente nenhuma verdadeiramente rica) uma obra digna dos maiores louvores e de um valor incalculável.
Há outros assuntos pouco explorados em bibliofilia brasileira, onde um colecionador ativo poderia empregar sua erudição e faro. Por que não colecionar os primeiros impressos produzidos nos diferentes estados e cidades do Brasil? É um assunto pouco explorado, onde há um vasto campo para pesquisa e muita descoberta a fazer. Outro assunto tentador seria colecionar os livros sobre escravidão ou sobre imigração ou, ainda, as primeiras edições dos escritores de uma escola literária. Digo de uma ou duas escolas literárias, porque ambicionar possuir todas as primeiras edições de obras literárias brasileiras seria uma ambição napoleônica.
O leitor já deve ter percebido que sou francamente partidário das pequenas coleções, da restrição do âmbito de uma coleção. De fato, hoje em dia não é possível um particular formar uma grande biblioteca sobre um assunto geral. Embora possua muito dinheiro, tempo e conhecimento do assunto, a concorrência que sofre das bibliotecas públicas, dos outros colecionadores que procuram as mesmas obras há mais tempo que ele, é um obstáculo muito difícil de vencer. É preciso ter sempre em mente que o número de exemplares de um livro é limitado. Muitos e muitos livros não existem mais no mercado, todos os exemplares já estão nas bibliotecas dos governos e nunca mais serão vendidos. É preciso saber que não se compra o que se quer, mas o que se pode comprar e o que aparece à venda. Já é, portanto, uma limitação com a qual o colecionador deve contar. Há livros que nunca mais aparecerão à venda. Um exemplo entre mil é o que aconteceu com a Historia da provincia Sãcta Cruz a que vulgarmete chamamos Brasil feita por Pero de Magalhaes de Gandavo, impressa em Lisboa em 1576. Dessa obra clássica, o primeiro livro sobre o Brasil escrito em português, existiam sete exemplares no mundo, todos em bibliotecas públicas da Europa e dos Estados Unidos. Em 1946 apareceu um oitavo exemplar. Oferecia-o à venda o famoso livreiro Rosenbach. Essas ocasiões são das tais que não se perdem. Agora, já, ou nunca mais! Como responsável pela direção da Biblioteca Nacional do Rio, naquele tempo, eu não podia deixar escapar essa ocasião única de enriquecer o Brasil com um exemplar de um dos livros mais importantes sobre nosso país. Comprei esse exemplar perfeito da tiragem mais rara, da qual só existem dois outros. Assim procedi, embora a Nacional já possuísse um Gandavo com as margens cortadas rente ao texto, bichado e encadernado num volume com outros folhetos. O Brasil merece possuir um belo exemplar de um dos monumentos de sua cultura. Muitos me criticaram acerbamente. “Sabeis quão má gente é a da Índia...”. Exemplos como esse aparecem a toda hora. Os livros raros vão sumindo do mercado. A ciência de colecionar consiste em saber quais os livros que estão desaparecendo e em comprá-los na hora certa. Muitas vezes é preciso coragem para pagar o preço pedido, mas sem coragem nada se faz na vida, nem uma biblioteca. Voltemos ao caso das pequenas coleções sobre um assunto determinado, preferivelmente às coleções gerais.
Na minha opinião, o que é digno de admirar é um conjunto de livros homogêneo. O que é apreciável numa biblioteca particular não é o número de livros caros que contém. A existência de livros raros no meio de uma porção de outros, sobre assuntos inteiramente diferentes, faz a gente lembrar muito mais o que falta na coleção do que aquilo que existe. Colecionar não é juntar livros. O que é difícil, o que torna a bibliofilia um divertimento, um hobby apaixonante, é justamente a procura do que lhe falta. É o prazer em encontrar o exemplar desejado. Pouco importa o preço que se pagou por esse prazer. Pode ser uma pequena fortuna ou alguns cruzeiros. Comprar livros raros e caros, a torto e a direito, está no alcance de qualquer pessoa com dinheiro no bolso.
Para se formar uma coleção homogênea sobre um assunto ou um autor é preciso ciência, conhecer a vida do autor, saber quando, onde publicou seus livros. É preciso toda uma soma de conhecimentos, uma verdadeira erudição, às vezes. É aí que está a diferença entre o verdadeiro bibliófilo e o mero comprador de livros. O verdadeiro bibliófilo sabe o que compra e por que compra. Às vezes tem a santa ingenuidade de crer que o livreiro não sabe o que está vendendo e não soube marcar o preço. Doce ilusão que logo perde. Os bons livreiros possuem três virtudes: o faro para descobrir, o talento para comprar barato e a fé em poder vender caro. O bibliófilo deve ter somente coragem para pagar e saber o que e por que está comprando.